quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Misturas


Misturas

Desde garoto sempre gostou de misturar, misturava cores, sabores, verde com vermelho, doce com salgado, amarelo com amargo. Misturava música e leitura, romance e rock, sexo e carinho, números e prazer, goiabada e queijo prato, cerveja e calor. Sentia atração por traços orientais com cabelos ruivos, negritude e olhos verdes, pele clara e lábios grossos, sempre misturado, quase nunca puro.

Quando ia à praia notava que esta se misturava com as páginas de um livro, talvez revolucionário como os poemas de Maiakovski, ou musical como os versos de Cruz e Sousa. Os lençóis de areia, à noite, se confundiam com seu corpo suado, misturado com outro corpo de pele macia. Mas não misturava pecado e culpa.

Fechava os olhos e era capaz de sentir o cheiro verde do campo, enquanto o cinza da poluição urbana mimetizava o concreto de seus pensamentos igualmente sólidos. O canto aveludado das aves voava até seus ouvidos, e sentia falta, e sentia saudade, sentia também o cheiro cítrico das sabiás-laranjeiras pousadas nas árvores: mangueiras, abacateiros e mamoeiros.

Mais tarde aprendeu a mistura dor com prazer, vingança com perdão, e a morte inevitavelmente passou a permear a vida, as perdas misturaram-se com os ganhos e as derrotas com os bônus. Mas nunca compreendeu o sentido e a razão da morte.

Da sua janela vinha um tom musical que se confundia com uma fragrância aguda, sentia-a acariciando sua pele, reverberando pela noite fria e escura. O passado, como um presente, se confundia com o possível futuro. Talvez isso fosse grave, ou seu estado fosse grave, mas tudo lhe parecia assim, uma eterna mistura.

E de tanto misturar já não distinguia o que era belo e o que era Mozart, não separava o sofrimento do merecimento, o amor da agonia, a culpa da solidão, o sorriso amarelado do fracasso do olhar dourado da vitória, o medo de errar da sorte de vencer. Verdades picantes se confundiam com mentiras agridoces.

E o tempo jamais lhe trouxe o benefício da maturidade, continuou a misturar, a paixão e o sofrimento, a dor e o poema, a loucura e a razão, o amor e a prisão. A realidade misturada à imaginação.

[Mente Hiperativa]

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