quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Não me importa


Não me importa

Pouco me importa a mancha amarronzada de lama que tinge a barra da minha calça jeans azul-marinho. Nem o pedaço de mortadela de frango sadia que está há cerca de cinco dias em cima do balcão da cozinha, dentro de um tapaware mal tampado e já produzindo um forte odor de podre. Nada disso me incomoda. O telefone toca várias e várias vezes, ignorando o fato que não lhe dou a mínima atenção, sequer ensaio qualquer movimento em seu sentido. Até gostaria de sacudi-lo janela abaixo, porém o estado em que me encontro não permite que me levante para executar árdua tarefa. Sendo assim, permaneço estirado no chão como uma barata inebriada por uma boa dose de inseticida em aerosol.

Na minha sala a poeira já formou uma colônia debaixo do sofá cor-de-mostarda e criou uma espécie de tapete sobre as pranchas de madeira que sustentam velhos porta-retratos cujas fotografias estão bastante desatualizadas. As janelas permanecem fechadas, assim como as cortinas, e o calor já não me incomoda mais. E há tanto papel amassado e outros dejetos no meu lixeiro que já trasbordam pra fora e se alastram pelo chão atingindo quase a porta. Com boa dose de ironia que ainda me resta, fico a imaginar se conseguirão cruzar a porta e ir embora sozinhos. Também pouco me importa se vão ou se ficam, se atraem baratas ou simplesmente enfeiam o espaço que habito. Que ainda habito.

As roupas no varal completam aniversário, até aquela camisa com listras azuis, verdes e pretas que tanto gosto e que meu irmão sempre pediu emprestada mas nunca dei. Até mesmo ela está há semanas estendida, recebendo os afagos diários da brisa salgada do mar. No momento estou com preguiça de recolhê-las, minha única preocupação agora é conseguir abrir um pacote de bolacha maisena e comê-lo com margarina enquanto zapeio os canais da televisão, mesmo sabendo que nada, absolutamente nada, poderá despertar meu interesse. É uma pena que o aparelho de DVD esteja quebrado senão poderia assistir um filme. Além disso, a máquina de lavar roupa também está quebrada.

Talvez depois de comer algumas bolachas eu jogue o restante do pacote no chão ou coloque-o sobre a mesa de centro e descanse um sono ali mesmo estendido no chão frio, com a cabeça recostada sobre alguma das almofadas empoeiradas e de extremo mal gosto que ganhei de presente da minha tia no natal passado. Bem que eu gostaria de tê-las recusado no ato, mas preferi não cometer tamanha desfeita. Pois bem, preciso dormir, depois de um bom sono eu sei que tudo ficará melhor. É sempre assim, sempre exatamente assim.

Com um pouco de sorte e após uns trinta minutos de espera, minhas pálpebras começam a pesar e então percebo que o remédio já vem fazendo efeito, tento lutar, mas acabo me entregando ao sono reconfortante e quimicamente induzido. Na TV, a apresentadora do noticiário anuncia a previsão do tempo, que pouco me importa, faça chuva ou faça sol, não vai mudar a minha vida. A imagem começa a ficar embaçada, ouço alguma coisa sobre guerras ou crises mundiais, calamidade nacional, o som começa a ficar disforme, affaires dos famosos, recém-descoberta do papel medicinal da geléia real no tratamento do câncer, acho que foi essa a última notícia que consegui ouvir antes de apagar de vez.

Pouco me importa se foi geléia real, câncer de mama ou laringe, cavaleiro das trevas ou renúncia do papa. Qualquer coisa pra mim não faria diferença naquele momento, eu gostaria mesmo é que o mundo inteiro explodisse com uma bomba atômica ou um meteoro inesperado. Eu precisava apenas dormir pra não ter que digerir o imenso mal que me foi causado. Pouco me importaria se a raça humana fosse dizimada durante meu sono plácido, assim como acabaram com os dinossauros e eu nunca senti a menor falta deles. Já não ouvia o som da TV, mas ainda pude sentir o cheiro de presunto podre que vinha da cozinha. Ou seria mortadela? A essa altura eu já não sabia nem o nome da minha mãe, o número do meu RG, quanto mais o tipo de embutido que fedia em meio a tantos problemas na minha cabeça.

O mundo parecia o caos, minha vida também. Mas pouco me importa, afinal quando não se tem amor nada é capaz de nos abalar.

[Mente Hiperativa]

10 comentários:

  1. Voltei a escrever... você está no meu novo cantinho:
    http://meustrintaanosemeussonhosadolescentes.blogspot.com.br/

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  2. Oi.

    Mas é que eu tive a impressão de que, talvez, ele se importe sim. Porque ele coleciona detalhes, uma riqueza em detalhes. Ou talvez sejam só lembranças de um dia no qual se importou? Mas essa imensa mente hiperativa, capaz de abrigar tamanha imensidão de detalhes e lembranças e ainda captar atentamente o ambiente em volta... essa mente não parece que vai continuar não-se-importando. Acho.

    Mas tá, impressão minha ou tu também é compulsivo, as vezes, por descrições intensivas na hora de escrever? Principalmente com cores... Amarronzadas, azul-marinho, cor-de-mostarda, azuis, verdes e pretas. E isso é demais! De repente me identifiquei com teu texto, não só com o conteúdo, mas principalmente com a forma escrita.

    Abraço.

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    1. Talvez ele tente não se importar. Talvez não valha a pena se importar com certas coisas/pessoas.

      Obrigado pelos elogios. Abração!

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  3. Muito bom o texto, adoro esses detalhes que me faz viajar .... Só fico a me perguntar se o sono é a solução ... acredito que só por uns minutos, e quando acordar ? tudo vai estar da mesma forma ! posso imaginar que quando as coisas vai perdendo o sentido, nossa vida começa a desandar!

    "O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida" (Viktor Frankl)

    Mi

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  4. Muito bom o texto, adoro esses detalhes que me fazem viajar .... Só fico a me perguntar se o sono é a solução ... acredito que só por uns minutos, e quando acordar ? tudo vai estar da mesma forma ! posso imaginar que quando as coisas vai perdendo o sentido, nossa vida começa a desandar!

    "O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido da vida" (Viktor Frankl)

    Mi

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  5. "final quando não se tem amor nada é capaz de nos abalar"....

    Bom final

    e claro q me remete a Freud dizendo que o amor é o sentimento (talvez o unico) capaz e nos causar tantas dores (mascaradas de indiferença) como felicidade.

    gostei do texto...
    quanto ao comentário sobre o sono, acho que posso dizer que em alguns momentos - apagar- faz bem ! ficar na tomada o tempo inteiro desgasta demais.
    Porém hj vejo q podemos desligar, apagar, esquecer, por vários caminhos... O sono (na sociedade hipocondríaca de hj) é apenas um deles, a arte, a música me apaga muito tbm embora hajam dores que nem a mais bela sinfonia possa amenizar.

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    1. Muito bom, e é verdade mesmo que podemos apagar de diversas formas. Bjo

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  6. acho que o fato dele se importar em não se importar é um bom começo.. ou recomeço, não sei ao certo.
    ele precisa dormir e quando acordar amar..

    p.s: a primeira impressão que o texto me causou foi que eu vi o DSM-IV da depressão de forma poética.

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    1. "ele precisa dormir e quando acordar amar.." Né?

      Gostei da visão poetizada do DSM-IV tb rrsrs. bjo

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